Escassez de água: entenda por que esse problema também é seu

IFSC VERIFICA Data de Publicação: 27 mar 2023 19:18 Data de Atualização: 29 mar 2023 13:44

É uma conta que não fecha: a quantidade de água disponível no planeta é estável, mas a escassez é um problema que vem causando preocupação crescente. Como um recurso abundante e renovável pode estar se tornando escasso? 75% do globo terrestre é coberto por água, então como é possível que haja escassez de oferta e desigualdade de acesso?

A ideia pode soar estranha, mas a quantidade de água que existe no planeta Terra é a mesma desde os tempos mais primórdios. Ela circula e se renova por meio do ciclo hidrológico, movimento contínuo pelo qual a água evapora, se condensa, se precipita e alimenta novamente nascentes, rios, lagos, oceanos, mananciais subterrâneos. A água passeia também pelas calotas polares, pelos alimentos e até pelos organismos vivos – os humanos, por exemplo, têm 70% do corpo formado por água.

Porém, cada vez mais existe preocupação global em torno da escassez de água – noção que deve ser compreendida como o oposto da abundância. E isso se deve ao reconhecimento de que a água doce corresponde a uma parcela ínfima em relação ao montante total, formado majoritariamente pelos oceanos.

“Até os anos 1990, sempre se teve uma ideia de que o mundo tinha abundância de água: observando os mares, rios, oceanos, de forma empírica, sempre pareceu que tinha muita água”, observa o professor de Geografia do Câmpus Joinville Maurício Ruiz Câmara, que tem mestrado na área e pesquisas sobre desenvolvimento urbano. Foi na última década do século 20 que a distribuição de água no mundo pôde ser quantificada, o que revelou que a disponibilidade de água doce é, na verdade, muito pequena. Em todo o planeta, 97,5% da água está nos oceanos, ou seja, essa imensa maioria é água salgada. A fração de água doce é de apenas 2,5%. Mas esses 2,5% não necessariamente estão ao nosso alcance, já que a maior parte está congelada nas calotas polares (70%) ou escondida nos aquíferos subterrâneos (29%). A água doce superficial representa apenas 1% da quantidade total.


 

Não bastasse o choque de realidade em relação à diminuta quantidade de água doce no mundo, ainda é preciso lidar com as desigualdades de acesso a esse recurso essencial à vida. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que 1,4 milhão de pessoas de todas as idades morrem anualmente por causas que poderiam ser prevenidas se, para elas, existisse acesso adequado à água potável e ao saneamento básico. E esse problema leva a outro, pois a falta de saneamento está diretamente relacionada com a poluição: em todo o mundo, segundo a ONU, 2 bilhões de pessoas usam água vinda de fontes contaminadas com coliformes fecais.

Mas qual é a situação do Brasil, e mais especificamente da região em que vivemos, nessa questão da disponibilidade de água? Por que, afinal, a água é essencial à vida? Que alternativas são discutidas para que o acesso a ela seja democratizado? Que setores são responsáveis pela contaminação dos nossos recursos hídricos? Podemos dessalinizar a água do mar? Qual a importância de encontrar água em outros planetas? Conversamos com pesquisadores do IFSC em busca de algumas dessas respostas.

Água, direito de todos e essencial à vida

Desde 2010 o acesso à água potável é considerado um direito universal pela Organização das Nações Unidas (ONU). Isso quer dizer que todas as pessoas têm direito de usufruir da água de forma suficiente, contínua e segura, para uso pessoal e doméstico – o que inclui a própria ingestão de água, seu uso no preparo da alimentação e os procedimentos de higiene necessários para uma vida considerada saudável.

A ingestão regular de água é tão importante para a saúde humana que ela pode ser considerada um alimento, de acordo com a nutricionista da Pró-Reitoria de Ensino (Proen) Carolina Abreu Henn de Araújo, mestra e doutoranda em Saúde Coletiva. “A água nutre nosso organismo e é essencial para que as funções vitais do corpo funcionem perfeitamente”, ressalta. A média ideal de consumo para um indivíduo adulto é de cerca de dois litros por dia, ingeridos gradualmente. “Algumas pessoas precisam de maior ingestão, como os idosos, que têm perda de massa muscular, além de pessoas com doenças crônicas como diabetes e hipertensão”, explica. A ingestão gradual, ao longo do dia, é importante para manter as funções do corpo e repor as perdas que ocorrem, como na eliminação pela urina ou pelo suor.

A ilusão da abundância no Brasil

A realidade global, porém, é de alto risco para 785 milhões de pessoas, que, segundo dados da ONU, não têm acesso à água potável – no Brasil, são 35 milhões, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA). “A escassez não ocorre somente nos países desérticos, semiáridos. Nós não temos a abundância que imaginávamos. De fato, o Brasil é abundante em água, mas grande parte dela está disponível na Amazônia. Então ela não está distribuída de forma igual”, observa o professor Maurício Ruiz Câmara.

Entender a relação escassez/disponibilidade exige que se pense na quantidade de água disponível em relação à população. No Norte do Brasil está concentrada 68% da água do país, enquanto a população corresponde a apenas 6% do total. A relação é invertida no Sudeste, onde mora 43% da população brasileira, mas a água equivale a apenas 6% do total. A região Sul, onde a frequente ocorrência de enchentes induz a um imaginário de excesso de água, tem 15% da população do país e apenas 7% da água. “Nós nos referimos à região Nordeste como um lugar onde falta água, mas na realidade a falta de água está aqui mesmo”, observa Maurício.

Para a professora Sabrina Pinto Salamoni, doutora em Microbiologia Agrícola e do Ambiente e docente no Câmpus Jaraguá do Sul, a escassez está relacionada à qualidade da água e à sua distribuição, e a desigualdade na distribuição em relação à densidade populacional é um fator agravante. “É sabido que o aumento da população demanda mais recursos hídricos para diferentes fins, principalmente para a indústria e agricultura, sendo esta última uma das atividades que mais demanda água”, analisa.

As águas residuais decorrentes dessas atividades têm elevado teor de contaminantes e não necessariamente são tratadas, embora haja exigências legais sobre isso. “Assim, ao se falar em escassez é importante mencionar que a qualidade da água está comprometida, que há a necessidade de tratamento para que ela se destine ao consumo humano, por exemplo.” A ONU estima que o processo de escassez pode causar um déficit de 40% na disponibilidade do recurso até 2030.


 

Cenário complexo

O cenário, então, é o seguinte: a quantidade de água doce existente no mundo é uma pequeníssima fração do total de água no planeta; uma quantidade menor ainda está ao alcance das pessoas; mesmo assim, a distribuição dessa água não é equânime por razões geográficas e populacionais; e a água disponível não necessariamente apresenta bom estado, já que a poluição por esgotos, resíduos industriais e agrotóxicos compromete grave e crescentemente sua qualidade. A questão da água é uma problemática tão imensa e complexa que motivou a realização de uma nova Conferência da ONU sobre Água, nos dias 22 a 24 de março de 2023, em Nova York. O Dia Mundial da Água é celebrado em 22 de março desde 1992, ano da realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente no Brasil (Rio-92).

Na análise do professor Maurício, a falta de saneamento básico é um problema antigo que leva, inclusive, ao comprometimento da balneabilidade das praias – e à contaminação da água salgada dos oceanos. Mas o processo produtivo é, segundo ele, o maior responsável pela poluição e também o maior demandante de recursos hídricos. Para a produção de 1 quilo de carne bovina, por exemplo, são utilizados 17 mil litros de água. “A região Centro-Oeste tem 15,7% da água doce do Brasil, lá estão as nascentes de vários rios importantes. Mas também há nessa região uma forte expansão do agronegócio. Dada a alta produtividade desse setor, nós podemos dizer que, indiretamente, o Brasil está exportando água”, alerta.

Todo o processo produtivo do agronegócio brasileiro depende da disponibilidade de água. O exemplo vai muito além da pecuária: são precisos 2,8 mil litros de água para a produção de 1 quilo de soja, 2.500 litros para 1 quilo de arroz e 5.280 litros para 1 quilo de queijo. “O volume de água virtual que o Brasil exporta seria suficiente para abastecer 1,5 bilhão de pessoas”, salienta o professor.

Fontes de contaminação incluem produtos químicos

O uso e consumo de água contaminada não só por esgotos, mas também por agrotóxicos e resíduos industriais, chama a atenção da Organização Mundial da Saúde (OMS): dados de 2019 apontam que 140 milhões de pessoas em 50 países estão bebendo água com níveis excessivos de arsênico, substância utilizada em agrotóxicos, venenos, tintas e cerâmicas. Já o consumo de água contaminada por coliformes fecais é a realidade de pelo menos 2 bilhões de pessoas, segundo dados de 2022 da OMS.

“Hoje nós podemos encontrar resíduos de pesticidas em qualquer copo de água de qualquer torneira, de qualquer sistema de abastecimento de água”, afirma o oceanólogo Mathias Alberto Schramm, doutor em Ciência dos Alimentos e professor do Câmpus Itajaí. “Analisando as pesquisas de alguns anos para cá, é possível dizer que as contaminações vêm aumentando, cada vez mais”, acrescenta. Pesquisa orientada pelo professor Mathias em 2021 constatou a presença de 12 agrotóxicos na água potável consumida no câmpus – inclusive, com a presença de substâncias proibidas como o carbofurano (produto usado no combate a insetos, ácaros, cupins e outros agentes, proibido desde 2017). As consequências disso recaem não só sobre as pessoas, mas também sobre os organismos marinhos e o ambiente como um todo. E a legislação regulatória não é suficiente para minimizar esse problema, em especial no Brasil, onde os parâmetros de análise tendem a ser mais permissivos do que em outros países (leia artigo de pesquisadores da Universidade do Planalto Catarinense-Uniplac, em inglês, sobre esse assunto).

A alternativa da dessalinização

A tecnologia necessária para remover os sais das águas salgadas e salobras - a chamada dessalinização - já está bem desenvolvida e é aplicada em países como as Ilhas Maldivas, Bahamas e Malta, onde a água consumida é 100% proveniente desse processo, segundo informações do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Na Arábia Saudita, a água dessalinizada é transformada na água potável consumida por metade da população. Aqui no Brasil, há experiências de dessalinização nos estados do Nordeste e em Minas Gerais, beneficiando 330 mil pessoas.

Porém, o processo não é mágico: dele resultam resíduos com sais concentrados, ou seja, bem mais salgados que a água original e que precisam ser tratados. Se despejados no ambiente sem tratamento, essa “salmoura tóxica” pode causar séria degradação dos ecossistemas. Segundo o PNUMA, 80% dos resíduos de dessalinização no mundo vão para locais inadequados. Resolve-se um problema imediato de um lado, mas cria-se outro que pode ter consequências de longo prazo.

Acredite: a água não é uma exclusividade da Terra

Ainda não há resposta para a questão sobre estarmos sozinhos ou não no Universo. Mas já há consenso científico em torno da existência de água - igualzinha à água terrestre, a fórmula H2O - fora do nosso planeta. Já se sabe que há água em outros planetas, luas e outros corpos celestes do Sistema Solar, assim como em exoplanetas – planetas que orbitam outras estrelas que não o nosso Sol. “Tem muita água nos planetas do Sistema Solar, nos planetas anões, nos cometas e nas luas, que são os satélites naturais desses planetas. Mas nem sempre se trata de água líquida”, explica o físico Marcelo Girardi Schappo, doutor na área e professor do Câmpus São José. Na Lua, por exemplo, há água congelada em regiões onde o Sol não incide, em especial nos polos e no fundo de crateras. Nosso vizinho Marte também tem água congelada em calotas polares, além de sinais geológicos de que tenha havido, num passado muito remoto, um oceano de água líquida na superfície. A lua Europa (que orbita Júpiter), o planeta anão Ceres (que fica entre Marte e Júpiter), os anéis de Saturno e os cometas também já têm a presença de água confirmada.

Além desses corpos celestes que podemos considerar “vizinhos” da Terra, já há presença de água confirmada em exoplanetas. Schappo explica que a pesquisa em outros sistemas é muito mais complexa e também bastante recente – o primeiro exoplaneta foi descoberto em 1992, e desde então já se identificou a existência de mais de 5 mil deles. “Ainda estamos começando a conhecer esses novos mundos, que são novos planetas que orbitam outras estrelas, mas certamente vamos lidar com água neles também”, afirma o professor.

Por que encontrar água em outros planetas é tão importante para a ciência astronômica?

Como a água é absolutamente essencial para as formas de vida da Terra, encontrá-la em outros planetas pode ser um indício de que, neles, possa haver também vida de alguma forma. Além disso, identificar os elementos e substâncias presentes nesses planetas e corpos celestes é uma forma de incrementar o conhecimento sobre eles e sobre nós. “É importante confirmar a presença dela [a água] no cosmos porque estamos tentando nos identificar. Olhando para a nossa casa, a Terra, a gente sabe que a água é fundamental para a nossa forma de vida, e foi essencial no próprio processo de formação da vida aqui”, analisa. “Mas isso não significa que todas as formas de vida possíveis sejam condicionadas à existência de água. Seria muita petulância achar isso”, pondera Marcelo Schappo.

A água de outros planetas pode ajudar a resolver a escassez na Terra?

A pesquisa astronômica é fascinante, mas também não é mágica. Embora já esteja confirmada a presença de água em muitos lugares fora da Terra, a hipótese de “importar” água interplanetária para suprir as necessidades de consumo na Terra não está na pauta. “Nós estudamos a água em Marte para conhecer Marte, caracterizar esse planeta, saber o que tem lá, sua composição, temperatura. A ideia é saber da água para conhecer o próprio ambiente que está sendo estudado. A possibilidade da disponibilização dessa água para uso humano só existe na hipótese de uma missão tripulada de longo prazo – e isso está na ordem do dia, é pauta zero da astronomia, da astrofísica, dos estudos planetários, viabilizar uma missão tripulada para Marte”, frisa o professor Marcelo Schappo. Portanto, as alternativas para frear o problema da escassez de água no planeta Terra terão que ser encontradas aqui mesmo, pelos humanos, com os pés bem firmes no chão.

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