Por que é dever da escola e das instituições de ensino promover ações que discutam orientação sexual?

IFSC VERIFICA Data de Publicação: 30 mai 2023 18:46 Data de Atualização: 31 mai 2023 11:15

Ao abrir as redes sociais, logo você vai encontrar alguma acusação de que uma escola ou uma universidade está praticando doutrinação de gênero, formando, nas palavras desses acusadores, “bichas” e “travestis”. É só promover um evento ou uma atividade pautado em relações de gênero que as acusações surgem – muitas delas feitas por políticos que questionam o papel da escola.

Em alusão ao 17 de maio, Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, o IFSC Verifica deste mês traz fatos para mostrar que as instituições de ensino devem sim falar sobre educação sexual, tanto que isso está previsto em lei.

Para saber mais sobre o tema, conversamos com os professores Lino dos Santos, do Câmpus Jaraguá do Sul-Centro, Patrícia Rosa e Felipe José Schmidt, do Câmpus Florianópolis, Paula Zuanazzi, do Câmpus Itajaí, Diogo Moreno, coordenador de Juventudes e Diversidades do IFSC, e com a chefe do Departamento de Formação e Práticas Educativas do IFSC, Eliane Juraski.

 

Também conversamos com a pedagoga e doutoranda em Formação de Professores pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Sara Wagner York e a profissional da área da saúde, com formação em Medicina, Ale Mujica Rodriguez.

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A orientação sexual é considerada um tema transversal pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que são definidos pelo Ministério da Educação. A justificativa é de que a sexualidade está presente em todos os momentos de nossas vidas.

Como tema transversal, ele não deve ficar restrita a uma disciplina, mas deve fazer parte dos planos pedagógicos das instituições de ensino fundamental e médio. Ou seja, os PCNs exigem que a abordagem seja muito mais ampla do que apenas discutir orientação sexual nas aulas de Biologia, quando se estuda o sistema reprodutor.

Apesar de ser um tema transversal, a orientação sexual ainda é pouco trabalhada nas escolas. A avaliação é do professor do câmpus Jaraguá do Sul, Lino dos Santos. Ele é trans e atua na área da moda. “Infelizmente nem na educação básica nem na superior a orientação sexual é vista como um tema transversal. São relegados para algumas disciplinas e alguns professores são responsabilizados como se tivessem o dever de abordar o tema enquanto outros não. Costuma ficar a cargo da História, da Biologia ou da Sociologia falar sobre isso, mas a Matemática também poderia abordar o tema ao analisar, por exemplo, os assassinatos de pessoas trans no Brasil. No ensino superior, infelizmente, os cursos escolhem os temas a serem tratados e questões de gênero estão muito mais relacionados à pesquisa e à extensão do que ao ensino e chegam muitas vezes nas universidades por pressão dos movimentos sociais.”


 

Ele também considera que é preciso que os gestores das instituições de ensino compreendam a importância desse assunto. “A responsabilidade de abordar esses temas não deve ficar apenas para o professor, os gestores das instituições de ensino precisam compreender a importância de falar sobre orientação sexual ou mesmo gênero. Não adianta eu formar os professores com cursos nessa área se o gestor não entende a relevância do tema. Inclusive, quando chegam os ataques ao trabalho de um determinado professor, a instituição precisa se posicionar, porque o que a gente vê são uma série de ameaças à pessoa do professor ou do educador, sem um posicionamento da instituição. A gente está falando da vida de pessoas, de ameaças de morte. É preciso barrar este tipo de atitude com o mínimo de efeito positivo para o outro lado, ou seja, com o mínimo possível de likes e comentários. O que a gente percebe é que esse discurso de ódio gera muito engajamento ao mesmo tempo em que não gera conteúdo. A minha perspectiva é que, quanto mais ataques de ódio, mais atividades temos que promover.”

A professora de Filosofia do Câmpus Florianópolis Patrícia Rosa avalia que os ataques se intensificaram na medida em que as pautas progressistas foram ganhando espaço. “Esses movimentos têm crescido no mundo todo há uns 15 anos. Ainda não sei qual nomenclatura deveríamos dar a eles, alguns utilizam o termo fascismo, mas eu não considero ser o mais correto, porque fascismo está localizado historicamente. A forma deles agirem é que se baseia numa concepção fascista de política do medo. A minha perspectiva é que temos que trabalhar por direitos por todas as humanidades porque existem modos diferentes de ser humano.”


 

A pedagoga e doutoranda em Formação de Professores pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Sara Wagner York explica que uma das táticas desses ataques de ódio é o de descredibilizar o professor. “Nestes posts é comum colocar em xeque a credibilidade de formação e de currículo do profissional que promoveu a atividade ou mesmo da própria instituição. Observamos também a constante produção de fake news, que é a produção intencional de notícias falsas, para causar um dano a alguém ou ainda quando há uma intencionalidade de criar uma narrativa descontextualizando algumas informações. As palavras mais perversas e absurdas que eu já ouvi sobre questões sexuais foram ditas por uma ministra que é hoje senadora da república sendo que ela nunca comprovou o que denunciou.”

Sara é transexual e professora e avalia que é fundamental que a educação vá além do binarismo homem e mulher. Nesse sentido, ela avalia que a presença de professores e alunos trans em sala de aula contribuem para esse debate. “Quando essa diferença for tratada como uma realidade da escola, a gente vai de fato estar fazendo educação.”


 

Uma demanda dos estudantes

O professor do Câmpus Florianópolis e presidente do Comitê de Direitos Humanos do IFSC, Felipe José Schmidt, dá aulas de Filosofia e explica que muitas demandas para abordar temas relacionados à orientação sexual chegam dos próprios estudantes. “Quando eu ministro ética e autocuidado eu trabalho a saúde enquanto um direito humano e surgem temas como gravidez na adolescência e Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Foi a partir de um trabalho como esse que fizemos uma parceria com o grêmio estudantil onde passamos a disponibilizar preservativos no câmpus. Trouxemos também um caminhão de vacinação, onde, além de atualizar suas vacinas, os estudantes também conseguiram fazer uma série de exames.”

A chefe do Departamento de Formação e Práticas Educativas do IFSC, Eliane Juraski, avalia que é papel da escola pautar estas questões. “Nós temos que acolher o conhecimento do senso comum e fazer com que ele passe pelo crivo científico para ressignificá-lo. Nós não estamos aqui para agradar ninguém, mas para desempenhar o nosso papel enquanto uma escola para formação de trabalhadores e trabalhadoras. Quando surgem esses ataques, a instituição precisa prestar o apoio a esses educadores. O bate-boca virtual não resolve e essas pessoas precisam ser punidas na vida real. Ser denunciadas e investigadas.”


 

Ela cita que a pró-reitoria de Ensino do IFSC está trabalhando em duas frentes para formação dos servidores como forma de incentivo à inserção desses temas nas práticas pedagógicas. “Estamos promovendo semanas pedagógicas integradas e realizando ciclos de formação continuada com todos os servidores em que serão abordados temas como direitos humanos, política de assédio e combate à violência.”

Estudantes trans

No IFSC, não há um censo sobre a quantidade de estudantes que se identificam enquanto trans, mas, no momento, sabe-se que 147 alunos optaram pela utilização do nome social.

Desde 2010, há uma regulamentação no instituto que permite a utilização do nome social nos registros acadêmicos por estudantes transexuais. Sendo que o nome social é aquele ao qual o estudante escolhe ser chamado e difere do seu nome civil.


 

O coordenador de Juventudes e Diversidades do IFSC, Diogo Moreno, explica que o IFSC tem trabalhado para promover ações específicas para atendimento desses estudantes. “Nós temos recebido uma série de demandas sobre como pensar em banheiros para os estudantes trans, este é um assunto que a gente vem debatendo para criar uma diretriz. Outro assunto que estamos discutindo, em conjunto com os professores de Educação Física, é sobre a inserção dos estudantes nos Jogos do IFSC (Jifsc). A gente sabe que muitos estudantes trans têm resistência a praticarem atividades físicas e a gente precisa mudar isso. Estamos também pensando em cotas nos editais específicas para atender esses estudantes e temos ainda que pensar na linguagem não-binária que é também uma reivindicação.”

Uso de banheiros

No Brasil, segundo a resolução nº 12, de 2015, do Programa “Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual” é garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito. Mas, apesar de existir uma legislação específica para isso, é comum ouvir de estudantes trans que se sentem constrangidos ao usar o banheiro. “Eu já ouvi o relato de uma estudante que fica o dia inteiro sem usar o banheiro por conta do medo da violência e do histórico de violência que ela já sofreu neste espaço”, relata o professor Felipe José Schmidt, do Câmpus Florianópolis.

Com relação ao uso de banheiros, o professor Lino Santos, do Câmpus Jaraguá do Sul-Centro, avalia que é preciso repensar na forma como esses espaços são projetados. “Eu vejo que criar um banheiro só para alunos trans não é o caminho porque, ao invés de incluir, excluí. O banheiro tem que ser pensado como nas nossas casas, de uso individual. Ele é uma porta, um vaso e uma pia. Eu entendo que nas escolas por uma questão de custos e mesmo de infraestrutura acabam se pensando nesses espaços de uso compartilhado, mas é preciso rever o planejamento desses espaços.”

Participação de estudantes trans em jogos esportivos

A jogadora da Superliga Feminina do vôlei Tiffany é considerada uma referência na inserção de atletas trans no esporte. Mas casos como os dela, no esporte de alto rendimento, ainda são raros. Como profissional da área da saúde, com formação em Medicina, Ale Mujica Rodriguez é trans e explica que “o controle dos corpos trans é muito maior do que o controle que é feito aos corpos de atletas cisgêneros”. “O corpo humano é muito mais complexo do que dividi-lo no binarismo homem e mulher em que a força estaria associada ao masculino e a suavidade ao feminino. O que a gente observa é que os corpos costumam ser educados para isso. As pessoas não se dividem apenas em XX e XY, há um debate muito interessante sobre esta questão do esporte que é promovido por pessoas intersexo e é preciso trazer essas discussões para a sala de aula.”

Nesse sentido, como pensar no caso de um estudante trans do IFSC que queira participar do Jifsc, por exemplo? Ele pode? Como ele deve ser inscrito? “O que a gente observa é que muitos estudantes trans evitam fazer aulas de Educação Física e por conta disso não aprendem na escola a jogar, eles têm medo de não serem aceitos e de sofrer violência no banheiro ou mesmo no vestiário. Se a escola não der este espaço, talvez ele nunca tenha outro, não vai desenvolver o gosto pela atividade física, não vai saber nem como o corpo reage a determinadas práticas. Nós precisamos de fato garantir a esses estudantes o direito à escola”, avalia a professora de Educação Física do câmpus Itajaí Paula Zuanazzi.

Você sabia?

O dia 17 de maio é declarado como Dia Internacional de Combate à LGBTfobia e esta data é considerada um marco porque foi em 1990 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o termo homossexualismo da lista de distúrbios mentais da Classificação Internacional de Doenças (CID). A partir de então, o termo homossexualismo, que antes caracterizava a orientação sexual como doença, deixa de ser utilizado e dá lugar ao termo homossexualidade. A transexualidade também já fez parte da lista de transtornos mentais da CID, mas foi retirada em 2019 pela Organização Mundial de Saúde (OMS).


 

Os trabalhos do biólogo e sexólogo americano Alfred Kinsey (1894-1956), autor dos livros Comportamento sexual do homem e Comportamento sexual da mulher foram fundamentais para a revisão desses conceitos. Ao estudar os hábitos sexuais de homens e mulheres nos Estados Unidos, ele observou a multiplicidade de manifestações sexuais humanas que iam além das categorias heterossexual e homossexual. Foi a partir de seus estudos também que a homossexualidade deixa de ser vista enquanto doença e passa a ser vista como um estado natural humano.

LGBTfobia é crime

O termo LGBTfobia é utilizado para se referir ao preconceito e à discriminação ocorrida em virtude da orientação sexual ou da identidade de gênero. A Lei de Racismo (7716/89) prevê pena de um a três anos, além de multa, a quem "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito" em razão da orientação sexual da pessoa. Se houver divulgação ampla de ato homofóbico em meios de comunicação, como publicação em rede social, a pena será de dois a cinco anos, além de multa.

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