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A imunidade coletiva pode acabar com a pandemia?

IFSC VERIFICA Data de Publicação: 22 set 2020 09:46 Data de Atualização: 18 fev 2021 17:37

Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) sempre recomendou o distanciamento social como forma de conter a pandemia do coronavírus até que se tenha uma vacina, alguns países cogitaram o uso da estratégia popularmente conhecida como imunidade de rebanho. O assunto gera controvérsia entre especialistas. Seria possível aguardar até que uma parte da população fosse contaminada para que a situação passasse a ser naturalmente mais segura para todos?

No post desta semana, vamos abordar as seguintes questões:

- O que é imunidade de rebanho?
- A estratégia de imunidade coletiva pode ajudar no controle da pandemia?
- O que é a taxa de transmissão?
- Quem já teve a Covid-19 fica imune?

Imunidade coletiva e imunidade de rebanho são a mesma coisa?

Sim, mas o termo científico correto é imunidade coletiva ou imunidade natural, que representa o processo em que um grande número de pessoas numa população já adquiriu anticorpos contra uma doença. “Se muitas pessoas da população possuem anticorpos contra a doença, elas param de transmitir para outras e, então, essa cadeia de transmissão é diminuída”, explica a professora do curso de Enfermagem do Câmpus Florianópolis Suelen dos Santos Saraiva, enfermeira e mestra em Saúde Pública. “Quanto mais pessoas imunes eu tiver na população, menor vai ser a transmissão dessa doença”, enfatiza.

Quando o nosso corpo entra em contato com uma doença, ele cria anticorpos. “Os anticorpos de memória fazem com que nosso corpo saiba como lidar com aquela doença e nos proteja daquilo”, afirma Suelen. Em algumas doenças, essa imunidade é vitalícia, ou seja, quem teve uma vez não contrai novamente. Mas, em outras, os anticorpos criados têm um prazo dentro do nosso organismo até pela modificação do vírus, o que faz com que a gente tenha que tomar vacinas periodicamente - como é o caso do vírus H1N1, cuja campanha de vacinação ocorre todo ano.

Imunidade natural X Imunidade pela vacina

A imunidade coletiva pode ocorrer naturalmente, quando se contrai a doença, ou por meio de vacinação. A professora do IFSC ressalta que a vacina é feita de uma forma controlada. “Mesmo que a vacina utilizada seja feita com vírus vivo, ela nunca vai ter a mesma força se eu pegasse a doença realmente”, pondera.

O que indica a necessidade de uma vacina é o potencial de contaminação da doença. “Temos que considerar como esse vírus circula e o quão rápido ele circula na população”, fala Suelen. No caso da Covid-19, esse potencial de transmissão é muito grande, como os números de novos casos e de óbitos comprovam. “É isso que vai me dizer que a população sozinha não vai conseguir se proteger contra esse agente infeccioso e a gente precisa de uma vacina para proteger a população”, afirma.

Como já explicamos neste post, o processo de fabricação de uma vacina é demorado. Enquanto o mundo inteiro espera esse momento que deve marcar o fim da pandemia do coronavírus, por que não deixar o vírus circular livremente entre as pessoas para que possamos nos tornar imunes e a transmissão possa definhar naturalmente?

Este debate vem sendo travado desde o início da pandemia. O Reino Unido chegou a cogitar essa estratégia de imunidade coletiva, mas recuou. A Suécia foi na contramão dos vizinhos europeus e apostou na “imunidade de rebanho”, não restringindo a circulação de pessoas. Resultado: em junho, era o segundo país da Europa com mais casos de contaminação por habitante.

Quem critica a adoção dessa estratégia aponta justamente o risco ao qual a população é exposta. A professora do IFSC é uma das que não concorda com a ideia de deixar as pessoas criarem naturalmente esta imunidade coletiva para conter a pandemia. “No momento em que você não toma medidas restritivas para uma doença que tem uma grande propagação, uma grande probabilidade de contaminação, você está deixando a população inteira suscetível a essa doença e a chance dela adoecer e dela morrer por isso é muito grande”, alerta.


Quantos infectados são suficientes numa população para que os imunes impeçam a circulação do vírus?

Cada doença tem uma taxa de transmissão chamada de R que é calculada usando modelos matemáticos. A professora de matemática do Câmpus Gaspar Vanessa Oechsler explica que o chamado R zero(R0) seria a taxa inicial, ou seja, quantas pessoas alguém que está contaminado pode infectar sem qualquer medida de combate. “Pesquisadores indicam que o R0 da Covid é de 2,4 a 3,3 - o que isso significa que uma pessoa passa o vírus a outras 2 ou 3”, afirma.

No livro “As regras do contágio: Por que as coisas se espalham — e porque param”, o epidemiologista Adam Kucharski define quatro parâmetros que são utilizados para a elaboração da taxa de contágio: 1) Duração da infecciosidade, 2) Oportunidade: com quantas pessoas o infectado teve contato, 3) Probabilidade de transmissão: quando duas pessoas de encontram, qual a probabilidade do vírus ser transmitido de um para o outro, e 4) Suscetibilidade: quão provável é que a pessoa contraia o vírus. “Esses parâmetros são traduzidos em números que são multiplicados e geram a taxa de transmissão”, explica Vanessa.

No Brasil, essa taxa tem variado. De acordo com o monitoramento feito pelo Imperial College London, que se tornou uma referência internacional em pesquisas sobre a Covid-19, a taxa em abril no nosso país chegou ao seu maior patamar de 2,81 e, em agosto, caiu para 0,94 - o menor índice até então desde o início do monitoramento. No entanto, o número de reprodução do novo coronavírus no Brasil voltou a subir para o patamar 1 na semana iniciada em 23 de agosto. “O ideal é que a taxa seja menor do que 1, o que indica que cada vez menos indivíduos se infectam e o número dos contágios retrocede”, aponta a professora de matemática.

Segundo o painel de dados da Fiocruz, dados de 20 de setembro - os mais recentes até a publicação deste post - apontam que a taxa de transmissão no Brasil e em Santa Catarina estava em 0,7.

Gráfico da Fiocruz mostrando a evolução de RT no Brasil e em SC

“É a partir dessa taxa que se estima o percentual de pessoas que deveriam estar imunizadas na população para que a gente possa ter a imunidade coletiva”, explica Suelen. Cada doença tem um valor diferente. Segundo a professora do curso de Enfermagem, de acordo com os estudos que se tem hoje, no caso da Covid-19, entre 60% e 75% da população deveria ter anticorpos contra o vírus para se pensar na imunidade de rebanho.

No entanto, ela menciona também um estudo publicado em julho na plataforma medRxiv que estimou que o limiar de imunidade coletiva ao novo coronavírus pode ser alcançado em uma determinada região se algo entre 10% e 20% da população for infectada. “Mesmo se for se pensar em 20%, é muita gente com risco de ficar doente e morrer”, diz Suelen. “É tudo muito novo, então a certeza só vai vir com a vacina, com uma imunidade garantida de uma forma não prejudicial à população”, afirma.

Na ilustração abaixo, adaptada de um estudo internacional publicado na Immunity, é possível entender melhor visualmente como funcionaria a imunidade coletiva:

 

Infográfico mostrando como funciona a imunidade de rebanho na população

A professora destaca que, conforme os estudos da doença têm apontado, cerca de 80% das pessoas infectadas têm sintomas leves - isso sem contabilizar o grande número de pessoas assintomáticas, ou seja, que possuem o vírus e nem sabem.

-> Qual a diferença entre doentes assintomáticos, pré-sintomáticos e sintomáticos?

Outros 20% da população que pegam o coronavírus precisam de algum tipo de auxílio médico e 5% dessas pessoas vão precisar de um leito de UTI. “Parece que é pouco, mas dentro do número de pessoas que estão ficando doentes, acaba sendo muito”, alerta Suelen.

-> Como funciona uma Unidade de Terapia Intensiva?

A lógica de uma imunidade adquirida por vacina é diferente. “Na vacina, você coloca esse patógeno na pessoa para que ela adquira os anticorpos, mas você coloca isso de uma forma enfraquecida, então a pessoa não vai ter a doença realmente, não vai sofrer com todas as consequências assim como as pessoas que ficariam aguardando a imunidade de rebanho que poderiam sim ter formas grave da doença e acabar tendo complicações e até mesmo óbito”, analisa a professora. “Não tem como neste momento a gente pensar em imunidade de rebanho justamente pela gravidade da doença e pela história que ela está apresentando na população”, reforça Suelen.

Outro ponto a se considerar é a taxa de letalidade da doença. Segundo dados do Ministério da Saúde, esse índice no Brasil, no dia 21 de setembro, foi de 3%. Em Santa Catarina, de acordo com boletim divulgado pelo Governo do Estado também em 21 de setembro, o índice ficou em 1,29%. Este número indica qual a proporção dos doentes que acabou morrendo em decorrência da doença. “A taxa de letalidade parece ser pequena, mas ela é alta dentro das características da doença, justamente porque a Covid-19 ainda está muito permeável na população e se disseminando com muita facilidade, o que faz com que as chances de muitas pessoas irem a óbito aumentem”, explica a professora.

Já peguei Covid-19. Estou imune?

Enquanto mais de 137 mil pessoas já foram a óbito por causa da Covid-19 no Brasil, o Ministério da Saúde contabiliza cerca de 3,8 milhões de casos recuperados na data de publicação deste post. Algumas pessoas que já tiveram a doença respiram aliviadas achando que estão imunes ao vírus e não poderão contraí-lo novamente. No entanto, a situação ainda não pode ser encarada desta forma.

“No caso da Covid-19, não se tem nenhum estudo ainda que consiga dizer realmente que existe uma imunidade adquirida e por quanto tempo essa imunidade é adquirida”, alerta Suelen. Segundo a professora, pesquisas têm buscado comparar o SARS-CoV-2 com outros tipos de coronavírus que apontam imunidade de 40 dias até três meses. Casos recentes - embora ainda raros - de reinfecção pelo coronavírus colocam essa imunidade adquirida ainda mais em xeque. “Não se tem noção de por quanto tempo essa imunidade vai ser adquirida”, ressalta Suelen.

Além disso, mesmo considerando uma imunidade temporária de quem já teve a Covid-19, a pessoa pode transmitir o vírus por meio de contato com superfície contaminada - como a professora Ângela Kirchner, também do curso de Enfermagem do Câmpus Florianópolis, explicou neste vídeo no post que já fizemos sobre doentes assintomáticos, pré-sintomáticos e sintomáticos.

A incerteza em relação a essa imunidade adquirida por quem já teve a doença fragiliza ainda mais a estratégia de imunidade coletiva. “Ao seguir a linha da imunidade de rebanho, você está deixando uma população suscetível a uma doença, deixando que aquele vírus circule sem ter uma garantia de sucesso lá no final”, destaca a professora Suelen. “Os pesquisadores têm estudado pra ver como tudo isso pode se dar, mas não se tem exatamente uma informação 100% fidedigna, uma evidência científica forte que fale quanto tempo tudo aquilo vai durar, então é muito difícil você apostar nesse tipo de ação para essa doença”, afirma.

Suelen reforça que os cuidados para evitar a transmissão devem ser mantidos inclusive por quem já testou positivo para a doença. ”Nesse tipo de doença, você tem que pensar em si e no outro, porque você pode estar se cuidando, mas precisa cuidar do outro”, avisa. 


O que pode acabar com a pandemia?

O que deve acabar com a pandemia é a imunidade coletiva da população, mas adquirida por meio da vacinação em massa. “Essa imunidade é que dá segurança para a população porque temos controle do que vai acontecer”, afirma Suelen.

Citação da professora Suelen: "Com o que se tem posto hoje, a imunidade coletiva só vai se dar por meio da vacinação."

> Existe uma previsão para o fim da pandemia?

Até lá, as recomendações para diminuir a proliferação do vírus seguem sendo o distanciamento social, o uso de máscaras e a higienização frequente das mãos. “O ideal realmente seria manter o isolamento enquanto a gente não tiver uma vacina eficaz para esse vírus porque realmente ele é muito agressivo e você ainda não tem uma garantia de por quanto tempo essa imunidade vai durar”, orienta Suelen.

Quer saber mais sobre o que abordamos neste post?

- A busca por um modelo matemático para descrever a dinâmica da Covid-19
- Entrevista da epidemiologista Maria Van Kerkhove da OMS em 19 de agosto comentando que os estudos sobre a resposta imunológica de quem contrai Covid-19 ainda não estão claros (veja no trecho a partir da marcação de tempo 47’15”)
- Live da Associação Brasileira de Saúde Coletiva sobre a imunidade coletiva
- Painel de dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em que é possível acompanhar a taxa de transmissão a nível nacional 

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